O ‘gigante da Amazônia’ e as lições sobre economia sustentável e conservação ambiental

Manejo sustentável de pirarucu implementado nos rios amazônicos salvou a espécie da extinção e alia produtividade, conservação da biodiversidade e geração de renda

Por Talita Oliveira | Coletivo do Pirarucu

Manaus | Apreciado na culinária por seu sabor e versatilidade gastronômica, o pirarucu (Arapaima gigas) é um dos maiores peixes de água doce do mundo e protagonista de uma iniciativa de sucesso, que alia produtividade e conservação da biodiversidade. Nativo da Amazônia, o peixe que atualmente chega nas cozinhas das casas e restaurantes de todo Brasil é fruto de um minucioso trabalho coletivo que envolve organização comunitária, proteção territorial, conservação da biodiversidade e geração de renda para comunidades indígenas e ribeirinhas.

O modelo de manejo de pirarucu começou a ser elaborado após a década de 1970, quando o declínio de atividades econômicas importantes fizeram com que a pesca da espécie virasse um meio de retorno financeiro rápido, ameaçando sua sobrevivência em razão da captura desenfreada.  A quantidade de pirarucus foi drasticamente reduzida e entrou para a lista da CITES – Convenção sobre Comércio Internacional das Espécies da Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção.

Após algumas medidas de proteção da espécie terem sido implementadas sem obtenção de resultados significativos, a pesca do pirarucu chegou a ser proibida. Foi então que em 1999 a primeira iniciativa de manejo de base comunitária foi implementada pelo Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, inicialmente na Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Mamirauá, no Amazonas.

Foi através do manejo sustentável, desenvolvido por povos indígenas e populações tradicionais, envolvendo também organizações de base comunitária e de assessoria técnica, além de organizações governamentais e de cooperação internacional, que o ‘gigante da Amazônia’ se tornou abundante nos rios e lagos da Amazônia. A proteção do território para o manejo do pirarucu fez com que outras espécies como tambaqui, jacaré-açu, tartaruga, tracajá, peixe-boi também voltassem a crescer na região.

Desde então, o modelo de manejo comunitário vem sendo aprimorado e aplicado com êxito em diversas Unidades de Conservação (UCs), Terras Indígenas (TIs) e áreas de Acordo de Pesca, beneficiando a biodiversidade de dezenas de áreas de floresta da região e gerando renda para milhares de pessoas que integram os diversos elos da cadeia de valor do manejo.

Como funciona o manejo sustentável de pirarucu 

Lagos de manejo na Terra Indígena Paumari, no Amazonas, em 2019. Foto: Marizilda Cruppe/Gosto da Amazônia

O manejo sustentável do pirarucu reúne um conjunto de diretrizes para a conservação da biodiversidade e a preservação dos estoques de peixe. É somente com a implementação dessas diretrizes, restrita a áreas pertencentes a UCs, TIS e Acordos de Pesca, que a pesca do pirarucu é permitida.

Uma das atividades fundamentais é a proteção territorial, que se dá através de equipes que fazem a vigilância de rios e lagos de pesca, para coibir invasões, desmatamento e demais atividades ilegais. 

A segunda etapa é a contagem dos pirarucus. Para desenvolver a metodologia, uma pesquisa aliou o conhecimento tradicional dos pescadores ao conhecimento científico, realizando vários testes, a fim de comprovar a habilidade dos pescadores em estimar os estoques de pirarucu por meio das contagens. Esse método se utiliza de uma peculiaridade desse peixe: a de aliar respiração aérea e branquial. De tempos em tempos, ele vem à superfície para respirar, o que permite o levantamento de quantos animais adultos e jovens há naquele lago.

Com a contagem realizada, uma solicitação de pesca é feita ao Ibama – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis. Conforme a contagem e o histórico da população do peixe na área, o órgão determina a cota permitida de captura, que é de no máximo 30% dos indivíduos adultos registrados. Os 70% restantes permanecem no local para assegurar a reprodução e o crescimento dos jovens.

Com a autorização do Ibama em mãos, vem a etapa da preparação e da pesca, que envolve minucioso planejamento e envolvimento massivo da comunidade. “Ninguém faz isso de forma individual, é um movimento comunitário sempre. Em média, cada ação de manejo envolve 15 famílias”, ressalta Adevaldo Dias, presidente do Memorial Chico Mendes e assessor da Associação dos Produtores Rurais de Carauari (Asproc).

Por fim, são realizadas as etapas de beneficiamento e escoamento da produção, que envolvem uma logística trabalhosa, já que os lagos de pesca geralmente são distantes das cidades.

As lições e resultados do manejo

O manejo do pirarucu tem a capacidade de promover a conservação da natureza ao mesmo tempo que garante a manutenção dos povos que estão trabalhando de maneira sustentável na floresta e gerando renda. É reconhecido internacionalmente como um modelo econômico de conservação que consegue alcançar os objetivos de desenvolvimento sustentável de uma maneira ímpar”, afirma Pedro Constantino, do Serviço Florestal dos Estados Unidos.

O manejo de pirarucu é um exemplo de como os conhecimentos tradicionais de práticas sustentáveis e convivência harmônica com a floresta podem gerar renda, fortalecendo a organização social e sustentabilidade das comunidades e, ainda, promovendo a conservação ambiental.

O pirarucu, que até pouco tempo estava em risco de extinção, não apenas voltou a habitar os rios amazônicos, como também aumentou sua população em 99% somente entre 2012 e 2016 e cresce em média 19% a cada ano, segundo diagnóstico feito coletivamente a partir do envolvimento de manejadores, pesquisadores, órgãos do governo, associações comunitárias e membros da sociedade civil, em 31 áreas protegidas e de acordos de pesca do Amazonas.

Junto com a preservação do pirarucu e a conservação da biodiversidade, o manejo traz outros diversos benefícios. Um deles é o aumento da renda e o fortalecimento da organização social das comunidades, o que promove a redução das desigualdades sociais, aumentando a segurança alimentar e promovendo uma significativa melhoria na qualidade de vida de povos indígenas e populações tradicionais, além de proporcionar maior participação feminina na atividade pesqueira.

O manejo promove a redução das desigualdades sociais, melhorando a qualidade de vida de povos indígenas e populações tradicionais. Foto: Ana Catarina/Gosto da Amazônia

Gracieme Feitosa, monitora de manejo da RDS Municipal Peixe-Boi, explica a importância da atividade para a sua comunidade. “A minha comunidade é muito carente, meu povo necessita muito. Todos lutamos muito para manter o manejo. No dia que o dinheiro da venda chegou nas minhas mãos para eu repartir com o povo da minha comunidade, eu me emocionei”.

Esses aspectos tornam as comunidades preparadas para fazer frente aos grandes desafios de gestão dos seus territórios, principalmente aqueles relacionados a atividades ilegais de exploração de recursos naturais, como a pesca ilegal, o garimpo e a exploração madeireira, além do recente aumento do narcotráfico na região.

O manejo comunitário do pirarucu é, sem dúvida, um importante instrumento de resolução de conflitos locais relacionados ao meio ambiente e território. 

A estratégia coletiva que fortalece os elos da cadeia de valor

“Banquetaço” preparado com ingredientes amazônicos por chefs de cozinha e manejadores do povo Paumari, em 2019. Foto: Marizilda Cruppe/Gosto da Amazônia

A promoção do manejo sustentável do pirarucu no Amazonas é articulada pelo Coletivo do Pirarucu, iniciativa criada em 2018, do qual fazem parte diversas associações de base comunitária, organizações governamentais e não governamentais, além de órgãos de cooperação internacional, envolvendo mais de 3 mil manejadores e manejadoras.

“O Coletivo surgiu de forma espontânea, como um importante espaço de conexão de iniciativas e discussão de estratégias de melhoria da cadeia produtiva como um todo”, explica Leonardo Pereira Kurihara, coordenador de projetos do Programa Amazonas, da Operação Amazônia Nativa (OPAN).

O grupo atua em diversas frentes para alcançar seus objetivos. Devido a sua diversidade e representatividade, são realizadas importantes incidências em políticas públicas relacionadas ao manejo. A inclusão do pirarucu na Política de Garantia de Preços Mínimos para os Produtos da Sociobiodiversidade (PGPM-Bio) e a presença intensa do grupo na Comissão de Alimentos Tradicionais dos Povos no Amazonas (Catrapoa), são exemplos que demonstram a força política do grupo.

Outra importante frente de atuação do Coletivo é no fortalecimento da comercialização do pirarucu, através do arranjo liderado pela Associação dos Produtores Rurais de Carauari (Asproc), organização que integra o grupo e que compra o peixe de diversas áreas de manejo do estado, vendendo parte da produção para o mercado público institucional e parte para o mercado privado, principalmente fora do Amazonas. A atuação comercial da Asproc promoveu o aumento de pelo menos 60% do valor do pirarucu pago ao manejador comunitário.

A estratégia adotada pelo grupo para promover a comercialização em novos mercados fora da Amazônia que possuem maior poder de compra, mas que desconheciam o produto, foi a criação da marca coletiva Gosto da Amazônia, em 2019. A colaboração entre a alta gastronomia, a valorização da conservação da natureza e o fortalecimento cultural dos povos indígenas e populações tradicionais, proporcionou a abertura e consolidação de mercados nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Belo Horizonte e Recife. Esta colaboração já levou 10 renomados chefs de cozinha para conhecer o manejo de perto , na Terra Indígena Paumari, em 2019, e pelo menos 20 manejadores participaram de festivais de gastronomia no Rio de Janeiro e São Paulo.

Em setembro deste ano, outros chefs, ganhadores dos festivais Gosto da Amazônia e que preparam pratos com o pirarucu selvagem de manejo sustentável por todo o Brasil, além de representantes comerciais, financiadores, distribuidores, jornalistas, pesquisadores e assessores, fizeram um novo intercâmbio com manejadores, dessa vez na Comunidade São Raimundo, na Reserva Extrativista (Resex) Médio Juruá, no Amazonas. Na ocasião, os chefs tiveram a oportunidade de vivenciar como a organização social comunitária e as boas práticas de manejo garantem a qualidade do peixe que chega aos seus restaurantes, ao mesmo tempo que assegura a manutenção dos serviços ambientais, fortalece a cultura e o desenvolvimento dos povos indígenas e populações tradicionais da Amazônia, contribuindo efetivamente para o alcance das metas internacionais do desenvolvimento sustentável.

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